A ÚLTIMA FRASE DE TANCREDO






"EU NÃO MERECIA ISSO".

Tancredo Neves não poderia imaginar que passaria per tanta agonia quando, no dia 14 de março de 1985, chamou o jornalista Antônio Brito e, ao convidá-lo para o cargo de Secretário de Imprensa da Presidência da República, disse, com um sorriso nos lábios: "Vamos sofrer juntos!"

Por Ironia do destino, horas depois Presidente eleito enfrentaria a primeira das sete cirurgias. Pouca antes de ser submetido à sétima operação, 28 dias depois, apertou as mãos do neto Aécio Cunha Neves, no Instituto do Coração, e balbuciou: "Eu não merecia isto" Foi a última frase que se ouviu de Tancredo Neves. Já respirando através do orifício aberto pela traqueostomia.

Na Sexta-feira Santa, dia 5 de abril, três dias após a quarta cirurgia, quando todos esperavam o fim de sua agonia, Tancredo manifestou seu último desejo: ouvir o trecho do Evangelho Segundo São Mateus, que descreve o momento em que Jesus Cristo expirou na cruz:

"Deus, Deus, por que me abandonastes? E o sol escureceu, e rasgou se no meio o véu de templo. E Jesus, clamando com grande voz, disse: Senhor, em Tuas mãos entrego o Meu espírito. E havendo dito isto, expirou" O desejo foi satisfeito pelo capelão, Padre Léo, e por frei Beto, juntamente com toda a família de Tancredo. Bom humor e otimismo no início: impaciência, depois; finalmente a resignada consciência da morte. Assim o Presidente Tancredo Neves comportou-se nos 39 dias de enfermidade.


Já no dia 15 de março, após recuperar- se da anestesia da primeira cirurgia, Tancredo passou a bombardear parentes e médicos com sua curiosidade sobre os ritos da transferência do poder: -Então, como foi? O Sarney tomou posse? Correu tudo bem? No dia 17, domingo, Sarney reuniu o Ministério, cumprindo a convocação feita por Tancredo, e leu o discurso que o Presidente eleito havia preparado para o dia. No leito do Hospital de Base, sem perder a cronologia dos dias e dos fatos, voltou a perguntar: -E então, foi feita a reunião do Ministério?

Na visita que lhe fizera na manhã do dia anterior, o Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, satisfizera, na medida do possível, sua avida curiosidade sobre a evolução dos acontecimentos políticos.

No dia 18, Tancredo pediu que instalassem um telefone na sala de recuperação, para comunicar-se com o Palácio do Planalto e com políticos. O telefone chegou a ser instalado, mas não foi usado. Nesse dia, um médico surpreendeu o Presidente cantarolando pelo quarto ladainhas religiosas que costumava entoar nas procissões de São João Del Rei, lamentando não poder participar das solenidades de Semana Santa.

No dia 20, Tancredo foi submetido à segunda cirurgia, com os intestinos presos, o abdômen dilatado e os pulmões com princípio de Infecção. Antes de ser anestesiado, pediu aos parentes: "Rezem por mim”.

O otimismo e a resistência psicológica à doença se manifestaria no dia seguinte, quando os médicos o informaram sabre a cirurgia realizada: -Presidente, o senhor precisa sarar- disseram os médicos.

- Precisa não, eu devo sarar. Agora podemos preparar o terno da posse-retrucou Tancredo. Entretanto, no mesmo dia, Tancredo já demonstrara impaciência: Desde as 8 horas da manhã vocês não me dão sossego reclamou, depois de uma longa série de exames.

Foram três dias bons, antes do sobressalto da terceira cirurgia e da súbita transferência para São Paulo. Ele chegara a iniciar a alimentação oral, reclamando do iogurte e estreando a gelatina, que ainda não conhecia. Andou pelo quarto e insistiu em ser transferido para a suíte presidencial do quarto andar do Hospital de Base.

Desde que voltou a falar, após a segunda cirurgia, diariamente, por volta das 20 boras, Tancredo, lia salmos da Biblia.com o padre Novarino Brusco. No sábado, 23, pediu o 114, que diz: "Obrigado, Senhor, por ter me salvado do abismo". Nesse mesmo dia escreveu a carta ao Presidente um exercício José Sarney, que se tornou seu último documento oficial. Tancredo elogiava a conduta de Sarney no exercício da Presidência, afirmando: “O seu exemplo tem me dado forças para superar esses momentos”.

Por esses dias, o bom-humor de Tancredo, confiante na recuperação, transparecia com frequência. Dona Risoleta comentou certa vez ao marido que os equipamentos que o cercavam junto à cama pareciam uma árvore de Natal", ao que Tancredo retrucou: Parece mais é um pé de jaca.

Logo após a primeira cirurgia, Ulysses Guimarães contou que faltou esparadrapo quando faziam um curativo em Tancredo, que brincou: Só porque fui eleito Presidente não vão começar a fazer economia comigo, né?

No dia 23 de março, Tancredo recusou a cama especial, adquirida para ele, da qual não gostava. Para justificar a recusa, brincou: "Cama especial é mordomia".

Ao posar para fotografias, no dia 25, antes da hemorragia que o levaria a São Paulo, insistiu em usar gravata. Contentou-se com o robe de chambre e o lenço de seda. Reconheceu o fotógrafo Gervásio Batista, cumprimentando-o:

-Gervásio, meu filho, como vai você? Apesar do otimismo da equipe médica, em seguida constatou-se a presença de sangue nas fezes e, no dia seguinte, era transportado às pressas para o Instituto do Coração, em S. Paulo, por determinação do gastroenterologista Henrique Walter Pitti, que passou a ser o médico chefe, em substituição a Pinheiro da Rocha.

No avião que o levou de Brasília a São Paulo, silencioso, o Presidente olhava para Dona Risoleta, sentada à sua direita, e para os agentes de segurança pessoal, crispando os lábios -tique que manifestava nos momentos de tensão. Reclamou também das turbulências que o avião enfrentou.

Pouco depois de chegar ao hospital, reclamou a um dos médicos.

-Mas doutor, ontem eu estava tão bem, tirei fotos, e agora estou aquí?

Ao ser informado, no dia 26, que seria submetido a terceira cirurgia, pelo médico da família, o cirurgião mineiro João Batista Rezende Alves, reclamou: -Não pode ser depois? Estou tão cansado!

Entretanto, continuava a manifestar confiança, dizendo a Dona Risoleta: "Nós vamos vencer mais essa".

No dia seguinte, recebeu a visita do Presidente em exercício José Sarney, em companhia do Governador Franco Montoro, fazendo o gesto que se transformaria em símbolo de sua resistência: apontou para o abdômen, contou até três com os dedos e levantou o polegar, em sinal de que tudo estava positivo. Na sexta-feira, 29, o barbeiro que terminou de fazer sua barba recebeu um comentário bem humorado de Tancredo, que perguntou: Quanto lhe devo?

No dia 2 de abril, entretanto, os médicos constataram que uma alça intestinal estava aprisionada no interior da hérnia, no lado esquerdo do abdômen, e descobriram também um novo foco infeccioso. Ao ser avisado da necessidade da quarta operação pelo cirurgião Resende Alves, respondeu:

-Se é necessário, vamos logo. Vamos acabar logo com isso, doutor. E para Dona Risoleta, que chorava, dirigiu palavras de conforto:

-Nós vamos sair dessa, mais uma vez. Sob anestesia peridural, perguntou várias vezes, durante as duas horas de cirurgia:

Quando isso vai acabar? Ainda falta multo tempo?

No dia seguinte à operação. Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal-Arcebispo de São Paulo comentou confiante aos repórteres:

"O homem quer viver e quer chegar ao poder". Os médicos, por sua vez, surpreendidos com a capacidade de resistência de Tancredo, exclamavam: "O homem é de ferro".

Enquanto esteve consciente, Tancredo comunicava-se com palavras, gestos e bilhetes. O Superintendente da Hospital das Clínicas, Guilherme Rodrigues da Silva, observou que ele não reclamava, mesmo nos exames mais dolorosos.

Na quinta-feira da Semana Santa, dia 4 de abril, sofreu a última anestesia de que teve conhecimento antecipado. Era a quinta cirurgia. Ao cirurgião Henrique Walter Pinotti, já recebendo respiração artificial, através do tubo orotraqueal, novamente contou de um a cinco com os dedos, finalizando o gesto com o polegar apontado para cima.

Na Sexta-feira da Paixão, fez dois gestos premonitórios. Escreveu em um bilhete: “Risoleta” e “São João Del Rei”, que alguns parentes entenderam como o desejo de ser sepultado em sua cidade natal. Em outro papel pediu para ouvir o sermão das sete palavras, que começa com a invocação de Cristo: "Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?" Tancredo acompanhou a leitura do sermão segurando as mãos de Dona Risoleta e da filha Maria do Carmo. O padre Leocir Pessini e frei Beto leram o sermão. No terceiro bilhete, pediu um rádio de pilha.

No Sábado de Aleluia, dia 6, Tancredo foi levado para o Instituto de Radiologia do Hospital das Clinicas para exames de tomografia computadorizada. No Domingo de Páscoa, voltou a sentar-se e ficou quase duas horas em uma poltrona colocada na sala da UTI, para reativar o funcionamento dos intestinos

Sempre com o incômodo tubo orotraqueal, na terça-feira, 9, escreveu aos médicos: "Aguardo suas decisões". O bilhete foi escrito às 13h20m e às 16 horas Tancredo era submetido à sexta cirurgia- a da traqueostomia, que indicava que o Presidente já não poderia respirar sozinho. O Secretario de Imprensa, Antônio Brito, transmitiu aos jornalistas a previsão dos médicos: "Daqui para a frente, os ganhos serão milimétricos".

A última grande vitória de Tancredo foi sobreviver à sétima operação, no dia 11 de abril, quando os médicos localizaram mais três focos infecciosos na base do mesentério. Desta vez, nem soube que seria operado.

Tancredo começava a agonizar. Os gestos, que ainda prenunciavam esperanças de recuperação, desapareceram a partir do dia 12, quando passou a ser mantido permanentemente sob efeito de sedativos e com o auxílio de Máquinas substituindo os pulmões e os rins.

Assim, no dia 13 de abril, sábado, ele não pôde ver Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal.

Arcebispo de São Paulo, entrar na UTI com um roupão esterilizado e transmitir a benção do Papa João Paulo II, que deveria ter sido transmitida no dia da posse.

Dom Paulo contou que o Presidente parecia adormecido, respirando tranquilamente e movia os lábios, “como que acompanhando e agradecendo".

Nos dias seguintes, Antônio Brito repetia o que os médicos já admitiam: "Agora, só um milagre".


 MORREU TANCREDO, RENASCE A LIBERDADE

Por amor à liberdade, morreu pela democracia, único regime no qual sempre acreditou. Por amor à causa do povo, descuidou-se da própria saúde e adiou uma intervenção cirúrgica que não podia adiar. Mas a morte, quase inacreditável, de Tancredo de Almeida Neves, aos 75 anos, detentor sem disputa do título de o maior estadista de Pais, após 38 dias de indescritível sofrimento, haverá de marcar, definitivamente, por tudo o que vivo representou, o renascimento da liberdade e a consolidação do Estado de Direito democrático entre nós.

Não foi por acaso que sua morte aconteceu no dia 21 de abril, quase 200 anos após o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Essa coincidência histórica é a confirmação de que, quaisquer que sejam os seus caminhos, haverá de partir sempre um só grito- o de independência do povo brasileiro e de defesa e amor eterno à liberdade.

Passada essa dor profunda, que dominou o País inteiro, enxugadas as lágrimas que generosamente se verteram e ainda se vertem por aquele que soube ser simples entre grandes e pequenos, a conclusão a que fatalmente se chegará será a de que Tancredo viverá para sempre no coração de todos os brasileiros. Na verdade, ele encerra sua carreira de político, com aquele sentido irrepreensível de respeitabilidade que deve ser a marca de todo homem público, com chave de ouro. Nos seus 51 anos de vida política, viveu pela causa pública. E agora, após demonstrar pelo exemplo o que se pode fazer por um povo carente de líderes, também morreu pela causa pública.

Cabe nos brasileiros interpretar essa lição de vida e de morte. Cabe aos brasileiros retirar, de sua vida de simples mortal, portador como qualquer um de virtudes e defeitos, os exemplos de que vamos necessitar para leva este país a cumprir o seu recusável destino de liberdade. Sua presença, ainda que morto agora, será a nossa força maior para impedir que, novamente, como tantas vezes já ocorreu, se interrompa bruscamente a nossa história a se manche, sob os mais variados matizes da violência, nossa terra bendita.

É sem dúvida muito difícil aceitar que o sacrifício imposto a Tancredo tenha sido necessário pera que o País, após essa manifestação pacifica do povo em favor de mudanças políticas, reencontre o seu verdadeiro caminho, após 21 anos de implacável autoritarismo, que castrou nossa gente e nos tornou menores perante as nações de todo o mundo. Mas esse sacrifício não será em vão se esse mesmo povo, unido em torno do ideal de Tancredo Neves, feito somente de simplicidade e de amor à causa da liberdade, seguir confiante em frente, sem atropelos, mas firme e decidido a mostrar aos seus falsos donos que "não há pátria onde falta a democracia". O desafio que se abre à sua frente terá que ser enfrentado sem retardamentos, rapidamente, sob a presidência de José Sarney, que não tem outra opção senão levar adiante um projeto que, por herança legitima, hoje pertence a 130 milhões de brasileiros.

É realmente muito difícil, para a família e para todo o povo brasileiro, aceitar o trágico desenlace. A nação inteira, órfã, chora a perda daquele que lhe transmitiu a esperança e, mais que tudo, a certeza de que dias melhores, sob sua vigilância, surgiriam para todos eles. Por isso, todos sabem: não será fácil manter esta chama acesa. Mas o cumprimento do dever nem sempre é tarefa fácil. Como na vida de Tancredo, os momentos de desalento cansaço, que nunca escondeu, serão permanentemente vencidos, pois "a causa do povo exige também coragem". As mesmas energias, que levaram Tancredo à sua incrível maratona política, por terem o se originado no próprio povo, hão de continuar intactas. E do seu discurso, pronunciado momentos depois de ser eleito, na Câmara Federal, o seguinte trecho: A história da Pátria, que se iluminou através dos séculos com o martírio da Inconfidência Mineira; que registra, com orgulho, a força do sentimento de unidade nacional sobre as insurreições libertárias durante o Império; que fixou, para a admiração dos pósteros, a bravura de brasileiros que pegaram em armas na defesa de postulados cívicos contra os vícios da Primeira República, a história situará na eternidade o espetáculo inesquecível das grandes multidões que, em atos pacíficos de participação e de esperança, vieram para as ruas, reivindicar a devolução do voto popular na escolha direta para a Presidência da República. Frustradas nos resultados imediatos dessa campanha memorável, as multidões não desesperaram, nem cruzaram os braços. Convocaram-nos que viéssemos ao Colégio Eleitoral e fizéssemos dele o instrumento de sua própria perempção, criando, com as armas que não se rendiam, o governo que restaurasse a plenitude democrática.

Tancredo enfrentou o desafio e o venceu. O fato de não haver assumido o alto posto de Presidente da República não significa que não tenha cumprido a contento sua missão. Esta, quem sabe, se encerrou no lançamento de suas bases, absolutamente necessárias à construção de um futuro mais palpável. O Presidente José Sarney não terá, pois, nada a fazer de melhor do que, como Tancredo, reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que, nos últimos 20 anos, sustentaram, com penosa obstinação, a esperança do povo:
- Esta foi a última eleição indireta do país.
- Venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo.


 Fonte: Revista Nossa Nº 13 de Maio de 1985
















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